Seu Rosto não me é Estranho
Algumas pessoas, quando passeiam pelas ruas, ignoram tudo o que as circundam. Nada veem. Concentram-se num problema que atribula as suas mentes e caminham automaticamente, mantendo apenas um pouco de controle para evitar choques com coisas ou pessoas. Pessoalmente, procuro agir de maneira diferente: deixo os meus problemas para momentos mais oportunos e, na rua, observo tudo com a maior atenção. Meus ouvidos e meus olhos estão sempre atentos. Inconscientemente, faço minhas deduções, e, pelos traços fisionômicos dos estanhos, procuro analisa-lhes o caráter, o meio de vida e tudo o mais. Afinal, esse tem sido o meu mister, há mais de trinta anos, e, por força do hábito, mesmo fora de serviço, observo a técnica adquirida pelo constante treinamento.
Nessa manhã, estava dando um pouco de indulgência à minhas manias. Num dado momento, vi um oficial holandês, em uniforme, que se aproximava de mim. Sendo eu próprio holandês, nossos olhares se cruzaram com maior intensidade. Imediatamente, voltou-me à memória a ideia de que já havia visto essa pessoa em circunstâncias um pouco trágicas. O indivíduo passara na minha frente, mas como caminhava muito lentamente, passei-o de novo e deixei que novamente ele passasse por mim, enquanto, aparentemente distraído, olhava os livros expostos em Hatchards.
Anos e anos seguidos, havia treinado minha memória, e ela alcançara, principalmente agora, uma perspicácia extraordinária. Com a educação da memória. Consegui alguma “departamentalização”, de modo que posso dividir diferentes casos e arquivá-los na minha mente, cada qual em compartimentos separados. Falando metaforicamente, basta-me retirar do meu arquivo cerebral a devida pasta, abri-la e recordar todos os fatos guardados, que jorram como de fonte generosa.
Quando, num relance de olhos, vi o desconhecido fardado, percebi que já o vira anteriormente. Mas… onde e quando? Na minha volta para o escritório. Fiz funcionar minha memória metodicamente. O homem era holandês e, provavelmente, vira-o na Holanda. Desde o inicio da guerra não tinha estado na Holanda: “ergo” devia tê-lo visto antes de 1939. Aparentava uns quarenta anos: por conseguinte, devia ter, naquela ocasião, uns vinte anos. Sob essas deduções reuni a maior parte dos fatos entre 1923 e 1939.
A esta altura, mentalmente, equacionei a segunda questão. Por que razão relacionara suas feições com algum acontecimento trágico? Por que me alarmei e surpreendeu-me vê-lo com a farda do exército holandês? Certamente, no íntimo, relacionava-o com algum caso atinente aos alemães. Assim, fui traçando o meu caminho. Minhas deduções levaram-me ao objetivo procurado. A porta do compartimento exclusivo da minha memória abriu-se de par e par, e todos os fatos nele contidos brotaram copiosamente.
(…) Na Contraespionagem, aprendi a conhecer o valor de todos os detalhes sobre a vida anterior do suspeito, antes de começar a interrogação. Quando me tornei chefe dos examinadores na Royal Victoria Patriotic School, e depois quando no serviço da contraespionagem Holandesa, transmiti essa aprendizagem aos meus subordinados que, antes de começarem um interrogatório, estabeleciam o seu plano de ação. O exame preliminar e a forma de se fazerem as perguntas constavam de uma ficha “pro forma”.
Texto: Coronel Oreste Pinto – Contra-Espionagem