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Fala Mestre!

Evelio Cabrejo Parra

A maior companheira do ser humano, quem sabe a única capaz de acompanhá-lo por toda a vida. Essa é a definição de linguagem elaborada por Evelino Cabrejo  Parra, pesquisador colombiano radicado na França, doutor em linguística e mestre em Filosofia e Psicologia.

“Os bons livros para bebês são aqueles que falam com eles, e não sobre eles”.

A leitura na primeira infância é fundamental para a construção do sujeito e explica o que e como ler para as crianças desde os primeiros meses de vida.

Quando nascemos, a voz é uma velha conhecida: a partir do quarto mês de gestação, a audição do feto passa a ser desenvolvida e ele começa a distinguir vários aspectos acústicos.

 Ao ler histórias para os pequenos, damos a eles a chance de encontrarem nelas ecos de sentimentos que ainda não conseguem explicar, embora os experimentem com frequência. E assim começa para cada um de nós um mergulho num universo particular.

 O mundo em que crianças e livros se encontram é o campo de investigação a que Parra, vice-diretor do Departamento de Formação e Pesquisas Linguísticas da Universidade Paris Diderot, na França, se dedica há anos. Nesta entrevista, ele discorre sobre a revolução que a literatura é capaz de fazer na vida da meninada desde os primeiros meses de vida e explica como a linguagem e o pensamento está intimamente conectado.

A importância de os bebês escutarem para a construção da linguagem e da relação deles com as pessoas que os cercam. Como é essa relação?

Quando estudamos os pequenos, é preciso entender as competências naturais que carregam consigo ao nascer, dentre elas, a faculdade da linguagem. O bebê vem ao mundo com uma sensibilidade muito grande à voz humana. Ao ouvir, tenta construir significados.  A voz se forma assim. Eu falo, por exemplo, porque escutei os meus pais quando ainda estava no berço e comecei a roubar alguma coisa da voz deles para construir a minha própria.

 Por que ler para as crianças contribui para o processo de aquisição da linguagem?

 Se o adulto fala com elas usando unicamente a linguagem cotidiana, dado ênfase a expressões como “venha aqui”, “Pegue isso” e “Não toque ali”, estará somente dando ordens, sem deixar espaço para o processo de escutar, que não acontece nessas situações. É durante a leitura que os bebês têm a oportunidade de ouvir e esse tempo é fundamental. Eles se colocam em posição de escuta e podem construir significados à sua maneira: observam o rosto do leitor e a direção do olhar dele e vão aprendendo o que é um livro. Ao mesmo tempo, já possuem um pequeno léxico usado no dia a dia – os verbos ser e estar, por exemplo – e conseguem identificá-lo no texto lido. Descobrem, então, que algo que está neles também está na obra. Assim, começam a compreender os textos de maneira prazerosa, tomam gosto pela leitura e entendem o espaço cultural dos livros no mundo. Na primeira infância, o hábito de ler deve ser integrado às competências naturais que as crianças têm. Assim, elas constroem significados para as coisas.

 Por que é importante trabalhar com diversos tipos de leitura logo na primeira infância?

 O falar cotidiano é pobre. Devemos dar aos bebês a chance de desfrutar ao máximo as possibilidades dos textos poéticos e literários. Nossa língua é uma fonte inesgotável de produção de frases e de encontro de palavras, coisas que só são descobertas  pelos pequenos quando temos o hábito de ler muitas histórias para eles. A partir de então, a linguagem começa a se transformar em uma companheira para toda a vida, possivelmente a única que estará sempre à disposição para falar, escutar, sonhar, fantasiar. Por meio dela, é possível colocar dentro de si harmonias e significados diferentes, elaborando um capital psicológico que poderá ser acessado em muitos momentos. Temos dois nascimentos um biológico e outro psíquico, e a linguagem é a matriz simbólica da construção do sujeito.

Como se dá a relação efetiva entre as crianças e as histórias?

 Os bebês fazem projeções por meio do que escutam: é assim que as obras entram em diálogo com a psique. Elas permitem que, lentamente, eles comecem a entender o que sentem, enviam ecos de questões que ainda não entendem. Na infância, sofremos com conflitos horríveis e fortes, que não entendemos e os adultos ignoram: os ciúmes são imensuráveis, a cólera é tremenda e até perigosa, e a tristeza, terrível. Embora essas sensações estejam incorporadas quando temos pouca idade, elas ainda não estão centradas culturalmente. Então, não temos como pensar nelas.

 Que características as obras devem ter para proporcionar esse laço de afetividade?

 Os bons livros para bebês são aqueles que falam com eles, e não sobre eles. É importante, por exemplo, que haja consonância entre a obra e o que estão vivendo. No período de ambivalência, que vai dos 4 meses ao final do primeiro ano, os pequenos tendem a ter um comportamento nervoso. Nesses momentos, podem ser lidas histórias que falem da questão por meio de metáforas. Assim, eles encontrarão uma representação de sua própria vida interior. O texto vai ajudá-los a se sentir compreendidos. Outra recomendação é não trabalhar com obras muito simples. Melhor optar por aquelas bem construídas, que não se deixam bem construídas, que não se deixam interpretar definitivamente e podem ser retomadas sempre que se quiser viajar de um jeito diferente.

 Que atitudes um adulto deve ter ao ler uma história?

 A primeira coisa é ter disponibilidade para amar as obras destinadas às crianças. Isso pode parecer um pouco romântico, no entanto, durante a leitura de um adulto para uma criança, é preciso haver cumplicidade. Se você não gostar da história lida, não adianta nada. As pessoas generosas são capazes de fazer uma espécie de regressão: permitem que o bebê que foram um dia no passado fale com o outro que está ali diante delas. Isso torna o contato mais profundo entre eles. Também é importante não atormentá-los fornecendo um resumo do texto logo no princípio ou explicar palavras por palavras lida. Se a criança comenta a leitura, é interessante que o leitor faça uma festa, comemore, para que ela se dê conta de que está sendo ouvida de verdade.

Por que é interessante os pequenos manusearem os livros mesmo havendo o risco de rasgá-los?

Os bebês buscam as obras para tentar lê-las, e não para destruí-las. Eles se interessam ao ver os adultos folheando-as e querem imitar. Os que têm pouca ou nenhuma experiência nessa tarefa rasgam alguns exemplares ou os colocam na boca por não saberem manuseá-los. Apesar disso, aos poucos, podem se transformar em pessoas que vão utilizar gestos compatíveis com o comportamento leitor. O livro é um objeto que necessita do contato com o ser humano para se transformar em um objeto de cultura. Ao mesmo tempo, uma das funções da leitura na primeira infância é permitir que o bebê ultrapasse o sujeito físico e alcance o cultural.  

Fonte: novaescola.org.br