Nova Inteligência Artificial
Você foi enganado. Aquele papo de robôs inteligentes, que pensam como os humanos, é bobagem da ficção. A ciência sabe a verdade e encara a IA de uma forma muito mais sutil. E o melhor é que os avanços desse campo trarão facilidades incríveis para a sua vida em breve. Acredite: os robôs da vida real vão continuar burrinhos por muitos e muitos anos…
Esqueça o robô Hal, do filme 2001, uma Odisseia no Espaço. Jogue no lixo o menininho de plástico vivido por Haley Joel Osment em Inteligência Artificial, de Steven Spielberg. Queime todos aqueles livros que prometem um futuro à la The Jetsons, com uma Rose androide que conversa sobre o Wando do futuro enquanto lava roupas.
Por mais que a ficção queira nos fazer acreditar, ainda estamos longe de ver cérebros eletrônicos tão complexos como o nosso. Em julho, durante uma conferência na Califórnia, cientistas concluíram que imitar o funcionamento da nossa mente não é a melhor forma de desenvolver uma tecnologia pensante. O evento da Associação para o Avanço da Inteligência Artificial (IA) discutiu uma das áreas mais promissoras desse campo: o aprendizado de máquinas. Essa especialidade engloba técnicas para que o computador possa melhorar seu desempenho sozinho, com base em regras e padrões tirados de bancos de dados. Técnica eficiente, mas que esconde um perigo.
Trata-se do controle sobre o livre-arbítrio das máquinas. Você sabia que já existe um robô que procura tomadas para se “alimentar” quando percebe que sua bateria está acabando? E ele faz isso sozinho. Uma vez ligado, aprende o melhor jeito de matar o apetite. Quer outra? Alguns especialistas levantaram ressalvas sobre construir mecanismos para controlar aviões de guerra remotamente. Imagine uma aeronave solta por aí e programada para matar com eficiência superior à do melhor dos pilotos?
A questão da responsabilidade sobre os atos de sistemas superinteligentes é delicada. “Com uma máquina que pode aprender, o usuário conseguiria ensiná-la a cometer crimes, mesmo que não tenha sido desenvolvida para isso”, diz o engenheiro de sistemas Aloísio de Pina, doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. A área de desenvolvimento de armamentos é uma das mais sensíveis. “A ameaça de robôs capazes de matar autonomamente é real. Sou contra a IA na indústria bélica.” Para o engenheiro, impedir pesquisas desse tipo é quase impossível. Elas são apoiadas por governos de grandes potências – mesmo que secretamente. Máquinas que escravizam humanos podem ser uma fantasia bocó de Matrix, mas inventar uma arma programada para matar mais do que o Rambo não é nada impossível.
E aí você pergunta: “OK, devo martelar meu iPod, notebook e BlackBerry?” Claro que não. A ideia de que nossos computadores se tornarão mais inteligentes que nós e de que poderão construir outros ainda mais dotados é um tanto exagerada. Para Pina, a ascensão de máquinas mais espertas que pessoas só é viável na ficção. O problema está mais no uso que nós, humanos, fazemos dos avanços da ciência. Ou seja, o inferno não são os robôs. O inferno somos nós.
Mas a população pode ficar tranquila. Continuamos no controle e vamos permanecer por muito tempo. Menos assustado? Que bom. Porque agora começam as boas notícias. As aplicações reais da inteligência artificial são mais pé no chão. E elas vão facilitar o seu dia a dia de maneiras que você nem imagina.
A inteligência artificial vai avançar para nos ajudar na hora de votar, investir, estudar e fugir dos gerúndios das operadoras de telemarketing
TRABALHO E EDUCAÇÃO
Cada vez mais esforços braçais poderão ser realizados por máquinas. Uma faxina doméstica, por exemplo. Outros trabalhos serão parcialmente tocados por computadores. Mas relaxe quanto à possibilidade de perder seu emprego para um robô. “Olhando pelo lado positivo, muitos empregos perigosos e insalubres podem deixar de existir”, diz o engenheiro de sistemas Aloísio de Pina. Em contrapartida, haverá geração de empregos na indústria, no comércio e na manutenção de máquinas inteligentes, além de na fabricação de peças.
Para o professor da Escola Politécnica da USP Emilio Hernandez, a IA é muito viável também no ensino à distância. Já existem protótipos, pesquisas e exemplos rudimentares de exames feitos por computador que se adaptam às respostas do aluno e se autoreprogramam conforme o rendimento. “E o PC também pode sugerir material de estudo a partir do resultado.” Essas máquinas podem não substituir o professor de carne o osso, mas conseguirão promover cursos personalizados, adaptados ao rendimento e velocidade de aprendizado de cada um.
MEDICINA
Assim como os robôs não substituirão de vez os professores, eles não vão tomar o lugar dos médicos. Mas serão uma mão na roda para esses profissionais. Sistemas de inteligência artificial irão checar uma radiografia ou um exame de sangue e identificar patologias. Mais: podem relacionar esses testes com desdobramentos de doenças, prevendo o que vai acontecer com o paciente no futuro, dependendo do resultado.
Além disso, a IA pode estreitar laços entre hospitais e centros de saúde com a indústria farmacêutica, alimentando bancos de dados e cruzando reações de pacientes à administração de certos medicamentos e possíveis efeitos colaterais.
POLÍTICA
Que tal contar com a ajuda dos robôs para decidir em quem votar nas próximas eleições? Ou então usá-los para fiscalizar o que faz a prefeitura da sua cidade e o Senado? É possível. Uma forma é ligar dados sobre quais pessoas ou empresas doaram dinheiro para determinados partidos e como os parlamentares daquela legenda votaram determinadas leis e outras decisões. Uma máquina pode cruzar e analisar esses dados com velocidade e precisão.
Com isso, teríamos uma baita ferramenta para pescar conflitos de interesse e maracutaias. “Há muita informação sobre doações e atividade política. Reunir tudo isso e filtrar com mecanismos de IA pode permitir que as pessoas construam ferramentas analíticas”, afirma Toby Segaran, empresário do ramo da biotecnologia e autor de Programando a Inteligência Coletiva.
VIDEOGAMES
Quer ver uma área em que a IA existe em massa e funciona bem? Jogos eletrônicos. Já pensou como é que um zagueirão no Fifa Soccer consegue se antecipar ao atacante que você controla? Ou por que um monstro em títulos como Silent Hill consegue surgir em locais diferentes a cada partida disputada? Isso tudo se deve aos sistemas de inteligência que esses títulos utilizam. O que permitiu a transição para os games mais espertos, que reagem conforme a ação do jogador, foram justamente os sistemas de aprendizado da máquina. “A inteligência artificial é uma ferramenta essencial para tornar os jogos mais divertidos e desafiantes”, afirma Michael Bowling, professor do departamento de ciência da computação da Universidade de Alberta, no Canadá.
Não é apenas isso. Segundo o grupo de jogos aplicados do Laboratório de Pesquisa da Microsoft em Cambridge, na Inglaterra, o campo de games é onde a inteligência artificial é mais aplicada hoje em dia. Também é a única área na qual pessoas leigas interagem com agentes controlados por IA regularmente. No futuro, vão importar menos os gráficos mais realistas e mais os recursos de interação entre o jogador e os cenários e personagens.
COMÉRCIO E SERVIÇOS
Vamos “estar pegando” um exemplo corriqueiro. Se você é um dos que detestam ouvir o gerundês das atendentes de telemarketing, prepare-se para acostumar os ouvidos com a voz metálica de uma gravação eletrônica. As máquinas estarão cada vez mais presentes do outro lado da linha em sites de compras ou serviço. Estamos muito mais próximos de ter conversações quase reais, como se estivéssemos falando com outro ser humano. E essas máquinas serão amigas do seu bolso: elas poderão ajudar você a achar um produto mais barato, por exemplo, ou o mais adequado às suas necessidades. E dá para duvidar de que elas dirão: “O senhor pode estar aguardando um minuto? Vou estar transferindo”.
O telemarketing do futuro será um verdadeiro e veloz personal shopper. “Hoje já temos uma qualidade relativamente alta de reconhecimento de voz e encadeamento de fonemas nas máquinas”, diz Emilio Hernandez, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
Segundo o especialista, a maioria das pessoas não gosta de “falar” com o computador quando precisam resolver algum problema ou fazer alguma reclamação. Mas, em outras situações, irão aceitar melhor esse tipo de interação – até porque usar máquinas pode baixar o custo do serviço.
COMUNICAÇÃO E REDES SOCIAIS
Existem dois principais campos férteis para a aplicação da IA nessas grandes áreas. O primeiro tem a ver com coletar e cruzar dados para fornecer matéria-prima para pessoas que estudam a dinâmica de relacionamentos pessoais. O outro vai beneficiar os próprios usuários, já que vamos ganhar dispositivos que facilitarão a comunicação pessoa-pessoa e pessoa-computador, que pode ser baseada em reconhecimento de voz ou de expressão facial (a chamada visão computacional). Imagine alguém poder acionar comandos no computador só com um franzir de sobrancelhas, por exemplo. Sem contar que xingar e fazer cara feia para a máquina quando ela der pau vai ganhar todo um novo sentido – ela vai entender exatamente o que você está querendo dizer; se for educada, vai pedir desculpas e se reiniciará sozinha.
DINHEIRO
Não se aventure a investir suas verdinhas de qualquer jeito. Além do corretor ou gerente do banco, seu computador vai ajudar você a escolher como administrar sua grana. É um ótimo exemplo de como funciona o aprendizado de máquinas: conforme os programadores carregam dados sobre o que já aconteceu no mercado financeiro no sistema, o software consegue “entender” melhor as flutuações e calcular probabilidades de forma mais precisa. “O risco sempre vai existir, o importante é ir corrigindo os erros à medida que surgem”, afirma o desenvolvedor de software Toby Segaran, responsável pelo programa de análises financeiras Freerisk (livre de riscos).
Segundo Segaran, que acaba de lançar nos EUA dois livros sobre o tema (Programming the Semantic Web e Beautiful Data), um exemplo do que pode acontecer é o crash de 1987. Naquele ano, sistemas automáticos de negociação de ações começaram a comercializar papéis cujos preços haviam caído levemente, gerando pânico, venda em massa e derrubando bolsas do mundo todo. Para Segaran, os riscos da IA têm mais a ver com panes como essa do que com robôs controlando nossas vidas. “As ameaças não serão tão previsíveis ou grandiosas como o que vemos na ficção ou que às vezes são discutidas pelos cientistas. Em vez disso, irão se manifestar de maneiras mais sutis e elementares que não podemos antecipar.” É pagar (ou poupar) para ver.
Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDR87097-7943,00.html